Recentemente foi divulgado pelas mídias o caso dos estudantes de medicina que, ao assistirem um jogo de vôlei feminino universitário, teriam abaixado suas vestes e, assim, deixado as suas partes íntimas à mostra.
Em um dos vídeos divulgados é possível ver cerca de 20 alunos com as calças abaixadas e exibindo, em tese, os órgãos externos (alguns deles cobertos pelas mãos) durante o evento. Em um outro vídeo deste mesmo grupo, observa-se o momento em que alguns deles correm pelados pela quadra.
O caso foi classificado como ato obsceno, porém, o que configura tal crime? A tipicidade penal está positivada no art. 233 do Código Penal que assim a define:
Art. 233 – Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.
A questão técnica a ser discutida aqui é se existiu o dolo em ofender o pudor alheio ou se foi, somente, uma atitude abarcada pelo animus jocandi (gozação). Pelo que sabemos através da mídia, pois não tivemos acesso aos autos, a conduta praticada pelos estudantes foi a de que eles abaixaram as vestes e deixaram suas partes íntimas a bel prazer para quem quisesse ver. Apesar da informação inicial de que houve uma masturbação coletiva, tal fato não foi comprovado. Também não há relatos de nenhuma outra prática de cunho sexual em face de quem quer que seja e nem palavras com o mesmo fim proferidas (o que em tese caracterizaria outro crime), ainda que de forma genérica.
Até agora só vimos e ouvimos um lado da história, sendo, portanto, imprescindível ouvir também o outro lado para que se possa emitir, ainda que de forma atécnica, qualquer opinião.
Doutrinadores como Nucci[i], Greco[ii], Delmanto[iii] e Rassi[iv], atestam que o elemento subjetivo do tipo é o dolo específico, consistente em ofender o pudor alheio e, sendo assim, caso o ato seja praticado com fim diverso de ofensa ao pudor de terceiros, o fato será atípico.
Nas palavras do Desembargador do TJSP e professor Guilherme de Souza Nucci[v]: “Aliás, o indivíduo pode até saber que a sua nudez é capaz de representar uma obscenidade, mas não há o elemento subjetivo específico de ofender o pudor público”.
No julgado abaixo podemos observar que um fato é atípico quando não há o dolo de ofender o pudor público. Vejamos:
Ato obsceno. Acusado que mantém relação sexual no interior do veículo estacionado em local público. Fato ocorrido durante a madrugada em via pública sem movimento e iluminação. Inexistência de dolo, de consciência da ilicitude do ato e da vontade de ofender o pudor público. Absolvição decretada. Inteligência do art. 233 do CP de 1940 e da Lei nº 7.209/84 (RT 602, p. 344)
No caso dos estudantes de medicina, certo é que uma conduta existiu (criminosa ou não), porém, ela deve ser individualizada para cada um dos agentes envolvidos, pois há relatos de que muitos estavam “tapando com as mãos” as suas partes. Dessa forma, não se pode colocar todos os envolvidos em uma única conduta tida como imutável, pois cada caso deve ser analisado de forma individual e, assim, havendo responsabilização pelo ato, que haja nos termos do art. 29 do CP e do art. 5º, XLVI da CF, respectivamente abaixo:
CP: Art. 29 – Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
- 1º – Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
- 2º– Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
CF: Art. 5º, XLVI – a lei regulará a individualização da pena (…)
Deve-se ter muita cautela quando analisamos o caso, pois temos um ordenamento jurídico positivado e o art. 233 deixa muita margem para interpretação, o que fere de morte o princípio da reserva legal. Isso é importante pelo fato de que um ato pode ser obsceno para uma pessoa e não o ser para outra, tendo em vista que o tipo penal não estabelece o que é um ato obsceno.
O Procurador de Justiça e Professor Rogério Greco[vi] foi muito feliz quando se expressou sobre a questão dizendo que: “O que não pode, sob o falso argumento de defesa da coletividade, é radicalizar a ponto de reconhecer qualquer comportamento incômodo como obsceno”.
Na mesma direção caminha Nucci[vii]: “Não é fácil definir com clareza o pudor público nem saber com exatidão quando uma exibição é obscena. Está-se diante de um tipo penal de duvidosa constitucionalidade, pois, quem deve decidir o que é obsceno, ou não, é o juiz”.
Apenas a título de possível esclarecimento sobre o crime de Importunação Sexual – previsto no art. 215-A do CP – que está sendo discutido dentro do contexto dos estudantes, neste é de suma importância para que se tipifique (de forma consumada ou tentada) que o ato libidinoso seja praticado contra alguém e com o fim específico de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro. Não havendo vítima direta e a prática libidinosa com o dolo de satisfazer a própria lascívia ou de terceiro não existirá o crime de importunação sexual.
Pelo que se sabe até o momento não há registros de que tenha havido qualquer ato libidinoso (que é diferente de obsceno) e, muito menos, com finalidade de saciar a lascívia dos envolvidos. Assim sendo, não está presente a tipicidade do art. 215-A do CP, que observamos abaixo:
Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro: (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave. (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)
A discussão que trazemos neste esboço é importante para que não acabemos por aceitar o julgamento midiático antes de sabermos, com exatidão, o que realmente aconteceu e de que forma aconteceu, para que possamos tratar a questão de forma técnica, correta e legal.
Por fim, nunca é demais relembrar o ensinamento de Ruy Barbosa:
“As leis que não protegem nossos adversários não podem proteger-nos”.
[i] Tratado de crimes sexuais / Guilherme de Souza Nucci. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 522
[ii] Código penal: comentado / Rogério Greco. – 13. ed. – Niterói, RJ : Impetus, 2019. p. 960
[iii] Código penal comentado / Celso Delmanto…[et al.] – 9. ed. ver., atual. e ampl. – São Paulo : Saraiva, 2016. p. 742
Outros autores : Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior, Fabio M. de Almeida Delmanto
[iv] Crimes contra a dignidade sexual / Alessandra Orceso Pedro Graco, João Daniel Rassi. – 2. ed. – São Paulo : Atlas, 2011. p. 196
[v] Tratado de crimes sexuais / Guilherme de Souza Nucci. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 526
[vi] Código penal: comentado / Rogério Greco. – 13. ed. – Niterói, RJ : Impetus, 2019. p. 959
[vii] Tratado de crimes sexuais / Guilherme de Souza Nucci. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 522