No Brasil, para uma conduta ser classificada como crime esta deve possuir previsão expressa na lei, pois o nosso ordenamento jurídico é regido pela legalidade, ou seja, se não existir uma conduta devidamente taxada e estabelecida pelo legislador como crime, não cabe ao julgador ou qualquer outra pessoa assim proceder.
A nossa Constituição Federal em seu art. 5º, XXXIX (e o art. 1º do CP), estabelece que:
Art. 5º (…)
XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
Pois bem, pelo dispositivo constitucional acima percebemos que nenhuma conduta que não estiver descrita em lei poderá ser considerada crime, sob pena de atentar contra o princípio (também constitucional) da legalidade, conforme dissemos acima.
O princípio da legalidade, nas palavras de Nucci[1] “é o princípio central do direito codificado, guarnecendo a indispensável segurança jurídica no âmbito das figuras típicas incriminadoras, bem como no contexto dos instrumentos processuais de persecução penal”. Continua o doutrinador[2]: “Há mecanismos criados pelos operadores do Direito, e até mesmo pelo legislador, que são capazes de colocar em sério risco de esvaziamento o princípio da legalidade”.
Isso é de suma importância para que a sociedade seja regulada de forma objetiva e, assim, evitar excessos arbitrários por parte do Estado, fornecendo, em tese, uma segurança jurídica homogênea a todos.
Com tal entendimento e amparo constitucional, trazemos a discussão sobre o envio de nudes, que podemos classificar grosseiramente como fotos ou vídeos íntimos pessoais compartilhados (por vontade própria) com alguém, seja por meio de mensagens privadas ou em plataformas de redes sociais.
Existem profissionais jurídicos, agentes da segurança pública e pessoas de outros segmentos que sustentam que o envio de nudes sem a anuência de quem os recebe configuraria o crime de importunação sexual, previsto no art. 215-A do Código Penal, o que ousamos discordar veementemente pelos motivos técnicos que iremos expor de forma bem objetiva.
O crime de importunação sexual tem em sua redação:
Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro: (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave. (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)
Para que o crime de importunação sexual seja configurado (tentado ou consumado) é necessária, entre outros requisitos, a prática de ato libidinoso contra alguém. Pois bem, como já massantemente abordado, ato libidinoso é aquele oriundo de um desejo sexual ou por ele movido, ou seja, aquele praticado com o propósito de obter prazer sexual.
No mesmo sentido, Cezar Roberto Bittencourt[3] diz que “(…) é ato lascivo, voluptuoso, que objetiva prazer sexual (…); Rogério Greco[4] entende que “(…) na expressão “outro ato libidinoso” estão contidos todos os atos de natureza sexual, que não a conjunção carnal, que tenham por finalidade satisfazer a libido do agente (…)”; Guilherme de Souza Nucci[5] sustenta que “(…) são atos libidinosos todos os que forem aptos a gerar prazer sexual a alguém, satisfazendo-se a lascívia ou estimulando a sua libido (…)”; Eduardo Luiz Santos Cabette[6] estabelece que “(…) Quanto aos outros atos libidinosos a casuística é extremamente vasta, abrangendo qualquer ato lascivo, sensual, destinado à satisfação da libido (…)”. Assim sendo, são exemplos de atos libidinosos diversos da conjunção carnal o coito anal, oral, toques lascivos, masturbação, beijos lascivos, entre outros. Logo, percebemos, sem muito esforço, que o ato de enviar fotos para alguém dentro do tema que estamos discutindo NÃO é um ato libidinoso.
Continuando com a explicação, além da prática de atos libidinosos, esta deve, necessariamente, ser praticada contra alguém e, óbvio, sem a sua anuência. É aqui que reside a divergência de interpretação do dispositivo feita por algumas pessoas, não pela doutrina e jurisprudência.
A palavra “contra” da redação do artigo, presume que a vítima determinada esteja presente de forma física ao ato praticado e não de qualquer outra forma, por total respeito à legalidade já abordada e, assim, o envio de nudes, em tese, é penalmente irrelevante, pelo fato do envio do material sexual pessoal, dentro do contexto que estamos trazendo, não ter previsão legal como crime e por entendermos que uma foto ou vídeo que contenha cena de nudez não é relevante para que o Estado se manifeste.
Antes de prosseguirmos, chamamos a atenção de que a discussão aqui é o envio de nudes entre pessoas maiores de idade, pois, quando houver criança e/ou adolescente envolvidos, a análise deverá ser feita caso a caso para que se apure se há ou não crime (desde que esteja tipificado no ordenamento jurídico).
Diferentemente é a situação da pessoa encaminhar os nudes para alguém e este terceiro dar publicidade a eles, onde este incorreria no delito previsto no art. 218-C (última parte) e a depender do caso no §1º do Código Penal:
Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia: (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018) (g.n)
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave. (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)
Aumento de pena (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)
§1º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação. (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)
Assim sendo, quando alguém enviar a outrem uma foto ou vídeo íntimo pessoal, a prática descrita (a depender do caso) poderá até gerar algum ilícito civil, mas não será considerada crime de importunação sexual.
Ao atentarmos para os crimes de conotação sexual previstos no Código Penal (arts. 213 ao 234) a palavra “contra” aparece uma única vez e justamente no crime de importunação sexual, impedindo, assim, a sua tipificação virtual como acontece, por exemplo, no crime de estupro e de estupro de vulnerável que admitem a modalidade na forma virtual a depender do caso concreto.
Uma coisa é o autor praticar o ato libidinoso CONTRA uma pessoa, outra coisa é praticar ato libidinoso COM a pessoa, pois são condutas completamente distintas.
Importante finalizarmos o breve esboço com a ressalva de que cada caso envolvendo envio de material de conotação sexual fora do contexto que aqui trouxemos – para quem quer que seja -, deve ser apurado e analisado de forma individual e técnica, pois o nosso ordenamento jurídico prevê diversas outras condutas como crime e, assim, não existe uma situação absoluta para todos.
DENIS CARAMIGO VENTURA
Advogado criminalista
[1] Princípios constitucionais penais e processuais penais / Guilherme de Souza Nucci. – 4. ed. ver., atual. e ampl. – Rio de Janeiro : Forense, 2015. p. 530
[2] Princípios constitucionais penais e processuais penais / Guilherme de Souza Nucci. – 4. ed. ver., atual. e ampl. – Rio de Janeiro : Forense, 2015. p. 92
[3] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. Vol. 4, p.48
[4] GRECO, Rogério. Código Penal comentado. 13. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2019, p. 840
[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Tratado de crimes sexuais. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 61
[6] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Crimes contra a dignidade sexual: tópicos relevantes. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2020, p. 18