Denis Caramigo Ventura
Certo é que em muitos casos de violência sexual a palavra da vítima é a única prova a seu favor e, quando identificado, em desfavor do acusado, porém, tal prova deve ser analisada com muita cautela para que a imputação criminal a alguém seja apurada de forma a não cometer nenhuma injustiça para quem quer que seja.
Como bem estabelece o professor Aury Lopes Jr [1]
“A palavra da vítima constitui uma prova bastante sensível, em que devem ser recusados os dois extremos: não se pode endeusar, mas também não se pode – a priori – demonizar e desprezar”.
A vivência prática nos possibilita tecer algumas considerações acerca de tal importante tema, porém, longe de esgotar o assunto, precisamos, cada vez mais, estar antenados com o que acontece no diaadia no judiciário brasileiro buscando, sempre, a justiça dentro daquilo que a lei nos permite atuar.
O crime de estupro de vulnerável tem previsão expressa no art. 217-A do Código Penal:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Aqui vamos nos concentrar nos vulneráveis descritos no caput do artigo, ou seja, nos menores de 14 anos.
Não são raros os casos de estupro de vulnerável que são noticiados à autoridade policial anos após o suposto crime ter sido cometido e isso se dá, em grande escala, pelo objeto do presente esboço, as falsas memórias.
Assim sendo, aqui é onde residem os maiores estragos na vida daquela pessoa que está sendo acusada não falsamente, mas por uma situação que na cabeça da suposta vítima, realmente existiu. Infelizmente encontramos diuturnamente em nossa caminhada profissional casos assim e nem sempre eles são tratados da forma como, diga-se, deveriam.
As falsas memórias não são mentiras contadas pela vítima, pois a pessoa acredita naquilo que ela está relatando por entender que fora vítima de um crime sexual por uma situação (nunca) vivenciada e por diversos motivos. A mentira, geralmente, é um ato consciente. Como estamos tratando das falsas memórias de uma suposta vítima de crime sexual, serão nelas que iremos continuar focados.
Quando uma acusação de crime sexual paira sobre o indivíduo que realmente praticou o delito os efeitos já são devastadores, imagina pra quem nada fez e mesmo assim figura como autor de um possível crime sexual cometido. Mediante a nossa experiência adquirida, surge a desconfiança da família, amigos, o psicológico fica doente refletindo na saúde física, o trabalho não rende, a vida social começa a deixar de existir, pensamentos suicidas surgem, pois a vontade de viver desaparece e nasce um rótulo que jamais se apagará: o de estuprador!
Ainda que lá na frente o procedimento investigatório seja arquivado ou se prove a sua inocência em juízo, o rótulo de estuprador estará tatuado na alma da pessoa que foi, injustamente, acusada e a desconfiança (ainda que de forma implícita) de todos aqueles que souberam do fato permanecerá sem ser esquecida.
Dessa forma, é de suma importância o tratamento dado à palavra da vítima quando esta for a única prova do suposto crime cometido analisando todo o contexto da situação sem nenhum juízo de valor sobre a imputação, pois ela pode ser verdadeira, mentirosa ou (no caso em comento) “verdadeiramente falsa”.
Obviamente que qualquer crime de conotação sexual deve ser combatido veementemente dentro da legalidade processual, porém, quando houver dúvidas acerca da materialidade e autoria do delito, o tratamento deve ser o mais técnico e polido possível, sob pena de danos irreversíveis a um inocente acusado injustamente.
Nas palavras do professor e desembargador do TJSP Guilherme de Souza Nucci[2]
“Nunca será demais destacar a necessidade de delicada convivência entre a devida tutela da dignidade sexual da vítima em confronto com o princípio da presunção de inocência do acusado (in dubio pro reo).
Não é de hoje que crianças e adolescentes possuem acesso quase que ilimitado à informação de todo tipo possível, principalmente pela internet por meio de suas infindáveis ramificações e, assim, muitos casos de falsas memórias acabam surgindo dia após dia, pois uma situação que tomam ciência nos dias atuais por meio de algum canal de comunicação como, por exemplo, um pai, avô…que estuprou realmente a filha, neta…faz com que ela comece a voltar no tempo (mentalmente) pra ver se aquilo que está vendo hoje não acontecera consigo da mesma forma no passado.
Há de se ressaltar, para que possamos prosseguir, que no crime de estupro de vulnerável não se exige nenhuma violência ou grave ameaça contra a vítima e, muito menos, conjunção carnal para que o crime ocorra, bastando, somente, qualquer prática de atos libidinosos.
Situação comum de grande incidência ultimamente é a que vamos relatar: a criança ou adolescente (menor de 14 anos) vê uma reportagem onde o avô, pai, tio…realmente cometeu o crime praticando atos libidinosos, como passar as mãos nos seios da neta, filha, sobrinha…No exemplo que estamos citando, houve realmente o crime, pois a passada de mão foi com fins libidinosos com o objetivo de saciar a lascívia do autor.
A criança ou adolescente vendo a reportagem se impressiona com aquilo e começa a buscar em sua mente algo parecido pra ver se não fora também vítima de algum crime sexual no passado e, assim, começa o martírio de muitas pessoas.
Muitas lembranças certamente irão remeter a um tio, padrinho, pai, avô que em algum momento esteve com ela no colo, piscina, em cima de um cavalo, moto, bicicleta, dentro de um veículo e que realmente tiveram algum contato físico, porém, sem nenhuma conotação sexual. Nunca é demais lembrar que atos libidinosos são aqueles que satisfazem a lascívia do autor e, assim, um carinho feito, uma passada de mão, um beijo dado…sem que contenha algum teor sexual, não pode ser enquadrado como crime.
Infelizmente situações como as descritas acima acontecem todos os dias por meio de falsas memórias da suposta vítima que em sua concepção fora abusada sexualmente no passado, pois não tem maturidade para discernir sobre o que é ou não tipificado como crime.
Muitas falsas memórias também são implantadas por membros da própria família por interesses diversos (patrimônio, guarda de filhos, vingança, interesses pessoais de diversas ordens, doenças mentais…) e isso acaba por inflar, ainda mais, a fértil imaginação da criança ou adolescente.
Claro que não estamos tentando impor à vítima tal discernimento sobre o real e o imaginário, mas fazendo um alerta aos sujeitos envolvidos na apuração da suposta infração penal, como psicólogo (a) s, policiais, promotore (a) s, juíze (a) s, advogado (a) s e conselheiro (a) s tutelares para que seja colhida a prova no momento correto e oportuno (por meio do depoimento especial) sem nenhuma mácula.
O assunto é complexo e demanda muito mais estudos sobre ele, entretanto, serve o presente para reflexão e debate, pois somente assim teremos como combater de forma sólida e efetiva as questões tormentosas que aparecem diante dos nossos olhos a cada segundo.
“O homem mais honesto, o mais respeitado, pode ser vítima da Justiça. Você é bom pai, bom marido, bom cidadão e anda de cabeça erguida. Você pensa que jamais terá de prestar contas aos magistrados de seu país. Que nenhuma fatalidade poderá fazê-lo passar por desonesto ou criminoso. Entretanto, esta fatalidade existe e tem um nome: o erro judiciário. Nada é mais falso do que pensar que o erro judiciário só atinge pessoas de má estrela, pois ele desaba igualmente sobre os afortunados e sobre os humildes”. (René Floriot)
[1] Direito processual penal / Aury Lopes Jr. – 18. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021. p. 516
[2] Tratado de crimes sexuais / Guilherme de Souza Nucci. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2022. P. 51/52