Socialmente é um crime menos debatido do que os demais que atentam contra a dignidade sexual, porém, não menos importante e que também merece uma atenção técnica para que a informação sobre ele seja a mais correta possível. Estamos falando do crime de violação sexual mediante fraude, conhecido informalmente por estelionato sexual.
O art. 215 do Código Penal dispõe que:
Violação sexual mediante fraude (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Podemos observar que o tipo penal explicita que o crime se apresentará quando houver uma conjunção carnal ou a prática de outro ato libidinoso com alguém mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima.
Nunca é demais ressaltar que atos libidinosos são aqueles oriundos de um desejo sexual ou por ele movido, ou seja, aqueles praticados com o propósito de obter prazer sexual (do agente).
Importante salientarmos que o modus operandi deste crime se dará, sempre, por meio de uma conduta fraudulenta que retira o poder de livre decisão a respeito dos atos e práticas sexuais de cada indivíduo sem que haja violência ou grave ameaça, pois, senão, o crime será outro, o de estupro.
Nas palavras de Israel Domingos Jorio[1]:
“No artigo sob análise, a liberdade é protegida contra uma investida mais sutil: a fraude. Aqui, há o consentimento do ofendido. Ocorre, porém, que esse consentimento é defeituoso, eis que calcado em equívoco induzido pelo autor do crime”.
A fraude que consiste em elementar para este crime e é definida pelo professor e desembargador do TJSP, Guilherme de Souza Nucci[2], como “ardil, cilada, engano”.
No mesmo sentido, aqui a fraude é elemento do tipo penal e deve ser compreendida como o estratagema, o ardil, o engodo empregados para fazer que a ofendida acredite em uma situação como sendo real, quando na realidade é falsa[3].
Antes de nos debruçarmos em alguns exemplos sobre situações que o crime em discussão incide, devemos fazer um breve apontamento sobre a parte final do artigo, “ou outro meio que impeça ou dificulte a manifestação da vontade da vítima”.
Tal apontamento é importante para que não se confunda o crime de violação sexual mediante fraude com o crime de estupro de vulnerável.
Conforme entendimento de Greco/Rassi[4], o que diferencia a situação do crime do art. 215 do crime do art. 217-A, § 1º do Código Penal, que também prevê a impossibilidade de a vítima oferecer resistência, é que, na violação mediante fraude, o “outro meio” a que se refere o art. 215 é o de natureza fraudulenta, apto a enganar a vítima, enquanto no crime de estupro de vulnerável (art. 217-A, § 1º) o meio é físico, que torna a vítima inerte sem capacidade de resistência, como, por exemplo, o ministrar substância entorpecedora.
Utilizando o entendimento acima, ousamos discordar em parte dos doutrinadores citados e entendemos que a capacidade de resistência da vítima deve ser completa para que o crime de estupro de vulnerável se configure, pois, se ela for relativa, entendemos que a depender do caso concreto o crime a ser tipificado é o de violação sexual mediante fraude.
No mesmo entendimento, Nucci[5] diz que no contexto do art. 217-A, em qualquer das duas hipóteses, busca-se uma ausência de discernimento para a prática do ato ou uma completa falta de resistência; no art. 215, está-se diante de aspectos relativos da livre manifestação, ou seja, a vítima mesmo enferma ou deficiente tem condições mínimas para perceber o que se passa e manifestar a sua vontade. O mesmo se diga acerca da resistência; quando esta for relativa, insere-se a conduta do art. 215, mas quando for absoluta, utiliza-se o art. 217-A.
Embora façam parte do “gênero fraude” Noronha[6] explica que artifício, lexicologicamente, significa produto de arte, trabalho de artistas. (…) Pode o artifício manifestar-se por vários modos: consistir em palavras, gestos ou atos, ser ostensivo ou tácito; explícito ou implícito; e exteriorizar-se em ação ou omissão.
Quanto ao ardil, dão-nos os dicionários os sinônimos de astúcia, manha e sutileza. Já não é de natureza tão material quanto o artifício, porém, mais intelectual. Dirige-se diretamente à psique do indivíduo (…).
Isto posto, passaremos a ilustrar o presente esboço com situações reais e aquelas que a doutrina costuma fornecer que, a nosso ver, são completamente obsoletas e carentes de idoneidade nos dias atuais.
Alguns exemplos da incidência do crime de violação sexual mediante fraude que os livros fornecem são: a) um irmão gêmeo, passando-se pelo outro, mantém relação sexual com a namorada ou esposa do primeiro; b) o agente, fantasiado exatamente como o marido, em baile de máscaras, consegue manter ato libidinoso com a esposa que não distingue um do outro; c) o agente, simulando casamento, consegue ter conjunção carnal com a moça ingênua, que aquiesce, crendo-se casada[7]. Tais exemplos não nos parecem os melhores faticamente.
Passemos, agora, a trazer situações do diaadia jurídico para que se possa discutir o tema de forma mais abrangente e, assim, tratá-lo de acordo com o devido respeito técnico sem populismo, achismo ou sensacionalismo.
Casos clássicos que se amoldam no crime de violação sexual mediante fraude são aqueles que envolvem, além de qualquer pessoa, médicos, dentistas, líderes espirituais, curandeiros, professores de academia, padres, pastores, rabinos, instrutores de auto-escolas, massagistas, entre outros, que se valem de suas atividades para violar a integridade/dignidade sexual das vítimas.
Ilustrando alguns exemplos acima, citamos abaixo 2 julgados em que houve a condenação e 1 que culminou na absolvição do réu:
a) STJ: “2. Hipótese em que a denúncia descreve que o recorrente, em tese, simulando a prática de procedimento médico ginecológico supostamente adequado, submetia suas pacientes a atos sexuais, sem consentimento válido destas. 3. Descrição fática contida na inicial acusatória que se amolda perfeitamente ao tipo penal descrito no art. 215, caput, Código Penal, pois o ato libidinoso ocorreu de maneira dissimulada, impedindo, assim, a livre manifestação de vontade das vítimas” (AgRg no RHC 43.254/AM, 5ª T., rel. Ribeiro Dantas, j. 23.06.2020, v.u);
b) TJRS: “Acusado que, na condição de “Pai de Santo”, atendeu a vítima, que buscava seus trabalhos por problemas de saúde, para a realização de uma “limpeza espiritual”, ocasião em que a levou para uma sala, trancou a porta, aumentou o volume do som, vendou a vítima e, após iniciar o ritual, a ordenou a ficar nua, a qual, embora constrangida, se despiu. Ato contínuo, o réu introduziu os dedos na vagina da ofendida e a colocou em diversas posições, bem como colocou a mão dela em seu pênis, sob o pretexto de que tais atos eram necessários para a vítima se livrar do mal que a afligia. (…)” (Apelação Crime 70081533176,6ª Câmara Criminal, rel. Vanderlei Teresinha Tremeia Kubiak, 27.06.2019, v.u);
c) TJSP “Na condição de dentista da vítima, praticou ato libidinoso com a mesma, passando a mão em seus seios, tentando tocar em suas partes íntimas e visualizar suas roupas íntimas com o objetivo de satisfazer sua lascívia, mediante uso de anestesia e com a vítima numa posição que impediu ou dificultou a sua livre manifestação de vontade (…); A vítima relatou o atendimento com falas inapropriadas para o que se espera de um dentista, porém, não ficou claro se ela estava anestesiada, se a posição em que foi colocada era ou não para impossibilitar a sua defesa e mesmo se a assistente do acusado, (sob sigilo aqui), estava ou não na sala no momento do atendimento. A ofendida afirmou em seu depoimento que o réu agia como se fosse pegar o babador e relava em seus seios, bem como que fingia que tinha caído uma sujeira e ia na direção de suas partes íntimas, porém, não tocou nelas. Além disso, ele não tirou a roupa dele e não apertou os seio dela, eram toques sutis. Portanto, não se comprovou que a anestesia tenha ocorrido ou mesmo que o réu tenha usado de meio para dificultar a movimentação da vitima, pela posição da cadeira, pois, trata-se de uma cadeira de dentista em que realmente se fica na posição deitada. Entretanto, o tipo penal do art. 215 exige a fraude ou meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima (…); Em face ao exposto julgo improcedente a ação penal para absolver o réu, já qualificado nos autos, da imputação pelo artigo 215, “caput”, do Código Penal, com base no art. 386, VII, do CPP (Processo nº 000xxx-xx.2017.8.26.xxxx).
Conforme podemos perceber, a conduta criminosa do art. 215 deve, necessariamente, estar envolta em um cenário fraudulento para que o fim lascivo seja alcançado, pois, se diferente for, a tipicidade poderá ser outra, quando prevista.
Imaginemos uma situação em que um instrutor de uma auto-escola, utilizando-se de sua condição, projeta-se para as pernas da motorista com a desculpa de ajustar o banco para que fique de melhor direção para ela e, assim, acaba por passar as mãos em suas pernas satisfazendo a sua lascívia. Certamente pela situação descrita o crime seria o de violação sexual mediante fraude, pois usara de uma “farsa” para alcançar o seu objetivo: passar as mãos na vítima com fins lascivos.
Por outro lado se ele, utilizando o mesmo cenário, passar a mão diretamente nas pernas dela visando saciar a sua lascívia, o crime será, em tese, o de importunação sexual, previsto no art. 215-A do Código Penal.
Não podemos perder a oportunidade de, mais uma vez, consignar que para a configuração do crime aqui exposto (dentre outros que atentam contra a dignidade sexual) a lascívia é conditio sine qua non para que haja tipicidade.
Finalizando este breve esboço, sem a pretensão de esgotar a discussão sobre o tema, ressaltamos que o crime de violação sexual mediante fraude pode ser cometido tanto por homem quanto por mulher, observando que na modalidade “conjunção carnal” (que é a cópula pênis-vagina) somente se dá, por razões óbvias, por meio de relação heterossexual. Já na modalidade “outro ato libidinoso,” não importa o tipo da relação para a configuração do crime.
[1] Crimes sexuais / Israel Domingos Jorio. – Salvador: Editora JusPodivm, 2018. p.95
[2] Tratado de crimes sexuais / Guilherme de Souza Nucci. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 139
[3] Crimes contra mulheres / Alice Bianchini, Mariana Bazzo, Silvia Chakian. – 2. ed. rev. e atual. – Salvador: Editora JusPodivm, 2020. p. 208
[4] Crimes contra a dignidade sexual / Alessandra Orcesi Pedro Greco, João Daniel Rassi. – 2. ed. – São Paulo : Atlas, 2011. p. 172
[5] Código Penal l Comentado / Guilherme de Souza Nucci. 10. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: RT, 2010. p. 919
[6] Direito penal: parte geral / Edgard Magalhães Noronha. 38. ed. rev e atual. por Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha. São Paulo: Saraiva, 2004. v.2. p. 365
[7] Tratado de crimes sexuais / Guilherme de Souza Nucci. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 141/142