Sim, o tema é polêmico, porém, também é técnico e o assunto precisa ser discutido para que tipificações penais sejam, cada vez mais, taxativas e sem margem de interpretações para uma maior segurança jurídica para todos.
A questão a ser discutida no presente esboço visa debater, longe de esgotar o assunto, se a presença da lascívia é necessária ou não para a tipificação do crime de estupro, previsto no art. 213 do Código Penal:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009
(…)
Pois bem, conforme podemos observar acima no tipo penal, este fala em conjunção carnal (cópula pênis/vagina) ou outro ato libidinoso como sendo requisitos obrigatórios para a configuração do tipo, juntamente com a violência ou grave ameaça.
Assim sendo, pela redação do art. 213 como está hoje (desde 2009), para que o crime de estupro se configure deve haver uma prática libidinosa mediante violência ou grave ameaça contra a vítima. Para um melhor entendimento, ato libidinoso é aquele que é oriundo de um desejo sexual ou por ele movido, ou seja, aquele praticado com o propósito de obter prazer sexual.
No mesmo sentido, Cezar Roberto Bittencourt[1] diz que “(…) é ato lascivo, voluptuoso, que objetiva prazer sexual (…); Rogério Greco[2] entende que “(…) na expressão “outro ato libidinoso” estão contidos todos os atos de natureza sexual, que não a conjunção carnal, que tenham por finalidade satisfazer a libido do agente (…)”; Guilherme de Souza Nucci[3] sustenta que “(…) são atos libidinosos todos os que forem aptos a gerar prazer sexual a alguém, satisfazendo-se a lascívia ou estimulando a sua libido (…)”; Eduardo Luiz Santos Cabette[4] estabelece que “(…) Quanto aos outros atos libidinosos a casuística é extremamente vasta, abrangendo qualquer ato lascivo, sensual, destinado à satisfação da libido (…)”. Por respeito ao direito, existem autores que discordam dos posicionamentos acima, como Israel Domingos Jorio[5] que afirma no sentido de que “Libidinoso não é o ato que emana do agente ou que busca prazer sexual. Libidinoso é o ato dotado de natureza reconhecidamente sexual segundo os acordos semânticos, culturais contemporâneos”.
Dessa forma, analisando o tipo penal sob o prisma do art. 213 e a doutrina majoritária, quando uma conduta for praticada sem os requisitos do tipo não se pode falar em crime de estupro.
Há de se ressaltar que, de acordo como o tipo penal está estabelecido atualmente, estamos focando na conduta do autor para a tipificação do crime e não na tutela penal da vítima, ignorando, assim, a sua dignidade sexual que é prevista no Título VI do Código Penal (e humana, art. 1º, III da CF/88). Explicamos.
Caso absorvamos o tipo penal em sua taxatividade absoluta, o que em matéria de direito penal é uma segurança jurídica, não haverá o crime de estupro quando uma pessoa sem nenhum fim libidinoso atentar contra outra em sua integridade sexual por total ausência de requisitos para uma configuração penal.
Uma crítica que fazemos antes de prosseguirmos é: sendo a dignidade sexual da vítima, que é o objeto de tutela pelo Estado, jamais o tipo penal do crime de estupro poderia ser criado da forma como o foi baseado na conduta do agressor, pois não faz sentido algum na prática positivada.
Imaginemos uma situação em que uma pessoa para se vingar da outra, seja pelo motivo que for, mediante uma ameaça por arma de fogo (grave ameaça), introduza um sabugo de milho em seu ânus sem nenhum caráter libidinoso. Estaremos diante do crime de estupro na situação descrita? Entendemos que pela letra fria da lei, não. Certamente que haverá um crime na situação descrita que será apurado de acordo com o caso concreto, porém, não o de estupro.
Houve uma grave ameaça (que está prevista no tipo penal), porém, o ato praticado não estava revestido de nenhum caráter libidinoso, apesar de ser sexual.
Uma outra situação para ilustrarmos o texto é um pai ou uma mãe que nervosos pelo fato da filha (criança) não querer tomar banho, em um momento brusco de lavagem, acaba por romper o himen introduzindo, sem nenhum fim libidinoso, os dedos dentro da vagina da criança. Estaríamos diante do crime de estupro de vulnerável?
Obviamente que a dignidade sexual da vítima fora violada, no entanto faltou por parte do autor da conduta a lascívia necessária para a configuração do crime, o que acaba sendo bizarro sob uma análise técnica.
Pelos mesmos motivos acima podemos, então, aplicar o mesmo entendimento para o crime de estupro de vulnerável, previsto no art. 217-A do Código Penal
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
A diferença é que neste tipo penal a violência e a grave ameaça não estão estabelecidas de forma expressa, tendo em vista que qualquer prática libidinosa em face dos vulneráveis descritos na tipicidade positivada é uma violência sexual. A vulnerabilidade sexual dos menores de 14 anos será sempre absoluta, enquanto a vulnerabilidade dos vulneráveis descritos no § 1º vai depender da análise do caso concreto para saber se é absoluta ou relativa.
Por fim, longe de esgotar o assunto e estabelecer de forma imutável o que é ou não o correto, não podemos perder de vista que o direito é uma mutação constante que visa regular o comportamento humano e debates como o aqui apresentado é necessário para que evoluamos, cada vez mais, como sociedade regida por um ordenamento jurídico positivado.
[1] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. Vol. 4, p.48
[2] GRECO, Rogério. Código Penal comentado. 13. ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2019, p. 840
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Tratado de crimes sexuais. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 61
[4] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Crimes contra a dignidade sexual: tópicos relevantes. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2020, p. 18
[5] JORIO, Israel Domingos. Crimes sexuais. – Salvador: Editora Juspodivm, 2018, p. 47