Eneida Gasparini Cabrera
É cediço que o salário do executado e suas acepções técnicas, previstos no inciso IV do art. 833 do Código de Processo Civil[1], cuja regra geral é da impenhorabilidade, podem ser penhorados para satisfação do crédito do exequente, ainda que sob o manto da proteção constitucional[2] e do princípio da dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, excepcionalmente, o comando do parágrafo 2º do artigo 833 do CPC[3] possibilita a penhora de verbas salariais em duas situações, onde a primeira trata-se da natureza da obrigação, qual seja, prestação alimentícia independentemente se decorre da relação de parentesco (pensão alimentícia) ou de ato ilícito (alimentos indenizatórios), sendo que o sentido, inclusive, é mais abrangente, alcançando créditos trabalhistas; a segunda refere-se a penhora de salários que exceder 50 salários mínimos mensais para qualquer tipo de execução, não ficando restrita a natureza alimentar.
Sendo assim, no caso de cumprimento de sentença de débitos oriundos de pensão alimentícia, o parágrafo 8º do artigo 528 do CPC[4] prevê a opção pelo rito de expropriação, de execução por quantia certa (arts. 523 e s.s do CPC), notadamente no que se refere às prestações alimentícias vencidas (parentesco), que excedem os últimos três meses ao ajuizamento da execução, sendo estas três últimas passíveis de cobrança pelo rito da prisão civil, bem como as vincendas no curso da execução.
No caso de persistência do devedor de alimentos em não cumprir com o pagamento das pensões alimentícias vencidas – que não raras vezes são pagas diretamente pelo devedor e não em desconto em folha – ou seja, o devedor não paga, não prova o pagamento, não justifica a ausência de pagamento, deverá de se seguir o procedimento tradicional de execução de pagar quantia por meio da penhora e posterior expropriação de bens (arts. 831 e s.s), incluindo protesto do título (da decisão interlocutória, sentença e acórdão) que tenha fixado os alimentos e da negativação nos cadastros dos devedores de alimentos (art. 528 e §3º do art. 782[5] do CPC).
Neste cenário, posteriormente às diligências empreendidas para o exequente ter seu crédito satisfeito, não encontrados bens passíveis de penhora em nome do executado, é cristalina a possibilidade do protesto do título e inclusão do nome do devedor de alimentos nos cadastros de proteção ao crédito (SPC e Serasa), considerando-se que a fome não espera e os alimentos devidos exigem urgentes e imediatas soluções para garantir a efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente.
Por serem os alimentos indispensáveis à subsistência do alimentando e se tratando de direitos da criança e do adolescente, o ordenamento jurídico brasileiro se orienta pela sua proteção integral e pelo princípio da prioridade absoluta – nos termos do artigo 227 da Constituição Federal, além das disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, ratificada pelo Decreto Presidencial 99.710/1990.
Ainda assim e por todas essas razões, a possibilidade da penhora do saldo FGTS e PIS do executado são realidades no entendimento de nossas Cortes Superiores e Tribunais.
O artigo 20 da Lei 8036/90[6] traz rol estabelecendo as hipóteses em que a conta vinculada ao FGTS – Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – poderá ser movimentada, dentre as quais, a hipótese de despedida sem justa causa, aposentadoria concedida pela Previdência Social; falecimento do trabalhador, pagamento de parte das prestações decorrentes de financiamento habitacional concedido no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), dentre outras situações, sem previsão expressa para a possibilidade de penhora para pagamento do débito alimentar.
Entretanto, de há muito, o STJ vem dando interpretação extensiva ao rol de hipóteses que autorizam o levantamento dos saldos das contas vinculadas do FGTS e do PIS, por considerar que tal rol é exemplificativo e não taxativo, desde que a hipótese concreta para levantamento venha fundada em pedido congruente com o fim social da norma, ficando evidente que a hipótese de penhora para pagamento de débito alimentar não foge ao objetivo da norma.
Nesse sentido, transcreve-se ementa de acórdão do STJ:
RECURSO ESPECIAL – AÇÃO DE EXECUÇÃO DE DÉBITO ALIMENTAR – PENHORA DE NUMERÁRIO CONSTANTE NO FUNDO DE GARANTIA POR TEMPO DE SERVIÇO (FGTS) EM NOME DO TRABALHADOR/ALIMENTANTE – COMPETÊNCIA DAS TURMAS DA SEGUNDA SEÇÃO – VERIFICAÇÃO – HIPÓTESES DE LEVANTAMENTO DO FGTS – ROL LEGAL EXEMPLIFICATIVO – PRECEDENTES – SUBSISTÊNCIA DO ALIMENTANDO – LEVANTAMENTO DO FGTS – POSSIBILIDADE – PRECEDENTES – RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
I – A questão jurídica consistente na admissão ou não de penhora de numerário constante do FGTS para quitação de débito, no caso, alimentar, por decorrer da relação jurídica originária afeta à competência desta c. Turma (obrigação alimentar), deve, de igual forma ser conhecida e julgada por qualquer dos órgãos fracionários da Segunda Seção desta a. Corte;
II – Da análise das hipóteses previstas no artigo 20 da Lei n. 8.036/90, é possível aferir seu caráter exemplificativo, na medida em que não se afigura razoável compreender que o rol legal abarque todas as situações fáticas, com a mesma razão de ser, qual seja, a proteção do trabalhador e de seus dependentes em determinadas e urgentes circunstâncias da vida que demandem maior apoio financeiro;
III – Irretorquível o entendimento de que a prestação dos alimentos, por envolver a própria subsistência dos dependentes do trabalhador, deve ser necessariamente atendida, ainda que, para tanto, proceda-se ao levantamento do FGTS do trabalhador;
IV – Recurso Especial provido.
(REsp 1083061/RS, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/03/2010, DJe 07/04/2010)
De mais a mais, tal valor tem por objetivo a assistência ao trabalhador desempregado, assistência que, evidentemente, não pode ficar restrita a ele, devendo-se ampliar tal entendimento para encampar os dependentes.
Confira-se posicionamento do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo:
ALIMENTOS – Execução – Penhora – Incidência sobre as verbas do FGTS existentes na conta vinculada de titularidade do devedor – Admissibilidade – Impenhorabilidade mitigada, com base no fim social da norma e nas exigências do bem comum – Recurso provido. (TJSP – AI nº 664.759-4/0 – Lins – 10ª Câmara de Direito Privado – Relator Octavio Helene – J. 15.09.2009 – v.u). Voto nº 11.922
Reitera-se aqui, portanto, que a dívida alimentar, em nosso ordenamento jurídico, dispõe de tratamento especial, haja vista o fim a que se destina, prevendo o ordenamento, por exemplo, a possibilidade da prisão civil, protesto, inclusão nos cadastros de proteção ao crédito, a possibilidade de penhora sobre os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios, enfim valores que dizem respeito à contraprestação pelo trabalho realizado pelo alimentante.
Não se mostra justo, portanto, nem mesmo consentâneo com a interpretação global do ordenamento, interpretar o rol da Lei 8.036/90, de forma taxativa, excluindo hipóteses outras, cuja finalidade seja semelhante ao buscado pela norma.
Assim, em atenção à natureza da verba devida e ao princípio da dignidade humana, esgotados todos os meios de obter o pagamento do débito pelo exequente, há todo campo possível no pleito de execução a autorizar o bloqueio do valor devido, incidente sobre o saldo da conta vinculada do FGTS e PIS do executado e transferir tal valor para conta judicial e posterior mandado para levantamento do valor em favor do alimentando.
[1] IV – os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2o;
[2] X do art. 7o da CF prevê: “Art. 7o São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [omissis]; X – proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa; [omissis].”
[3] “§ 2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8o, e no art. 529, § 3o”.
[4] “§8º O exequente pode optar por promover o cumprimento da sentença ou decisão desde logo, nos termos do disposto neste Livro, Título II, Capítulo III, caso em que não será admissível a prisão do executado, e, recaindo a penhora em dinheiro, a concessão de efeito suspensivo à impugnação não obsta a que o exequente levante mensalmente a importância da prestação”.
[5] § 3º A requerimento da parte, o juiz pode determinar a inclusão do nome do executado em cadastros de inadimplentes.
[6] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8036consol.htm
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